29/03/2021

JEJUAR OU MUDAR?

"Existem dezenas de coisas que realizamos no decorrer de nossas vidas sem nos darmos o trabalho de questioná-las racionalmente. Não é à-toa que um dos ensinamentos da Programação Neurolinguística (PNL) é questionar, por exemplo, frases do tipo “É certo que...”. “É certo para quem, cara-pálida?”. Foi com esse espírito que, há poucos dias, resolvi me distrair com um amigo que decidiu jejuar na quaresma.

--- Vou ficar sem tomar cerveja durante quarenta dias, disse-me ele em tom solene.

 --- Que eu me lembre, nunca jejuei na vida, comentei.

E como ainda continuo analfabeto sobre muitas coisas das religiões, perguntei-lhe: “Com que objetivo, ou seja, por que você decidiu jejuar”?

Como jejuar é uma prática milenar e este amigo freqüenta regularmente a Igreja Católica, julguei que a resposta me viesse rápida, clara, direta e objetiva. Para o meu espanto, a coisa não foi bem assim.

--- Ah, Ah..., pigarreou.

Recordei-me do que dizia um competente professor de Filosofia: “Começou com ah, ah, a coisa vai mal”.

--- Ah, é um agradecimento a Jesus por me ter salvado e por me conceder as coisas boas da vida, esclareceu.

Sempre que posso e consigo, sou praticante de PNL. Comecei, assim, a atucanar meu amigo. Aqui, poderia ter usado outro verbo --- “chatear, consumir, vexar, ralar, afligir, aborrecer, amofinar, atenazar, importunar, molestar, aporrear, aporrinhar, abodegar, aguinir, aperrear, atubibar, atucanar, avexar, azoretar, azucrinar ou sovelar” ---, mas preferi “atucanar” para também atucanar o leitor, talvez em razão de algum trauma político inconsciente.

Fiquei em dúvida sobre qual a melhor direção para nossa conversa. Valeria a pena lhe perguntar --- como faço algumas vezes: “Jesus salvou você de quê”? Num relance, contudo, lembrei-me de que o meu foco era o jejum e, desse modo, perguntei:

--- Será que Jesus ficará agradecido por você se sacrificar na quaresma? E acrescentei: particularmente, eu não gostaria que meu filho resolvesse deixar de comer chocolate por uns dias como um sinal de gratidão a mim; preferiria que ele mudasse algo em seu comportamento ou, principalmente, fizesse algo de concreto para se tornar uma pessoa melhor.

--- Ah, ah, pode ser, resmungou o amigo.

Neste ponto, recordei-me das palavras de Jesus, que constam do Evangelho de Tomé, sentença 14: “Se jejuarem, incorrem em pecado, e se orarem serão condenados, e se derem esmolas prejudicarão os seus espíritos”. Parafraseei as palavras de Jesus e acrescentei: “E daí?”... “Sai dessa!”.

--- Isso não deve ser entendido “ao pé da letra”, argumentou.

--- Sim, mas e daí, como fica, retruquei.

Ele me devolveu a pergunta:

--- Afinal, o que Jesus quis dizer com tais palavras?

Era a oportunidade que eu esperava para começar a “viajar na maionese”, como faço, muitas vezes, em minhas interpretações bíblicas.

--- Meu amigo, comecei, para mim Jesus estava se referindo a nosso ego. Se ao jejuar, ao orar ou ao dar esmolas, a pessoa se sentir que está massageando o seu ego, certamente vai incorrer em pecado, será condenado e prejudicará o seu espírito --- que é o seu verdadeiro “eu”! Jesus foi claro: “Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,25). Em outras palavras, quem quiser salvar o ego, vai perder a verdadeira vida. Mas isso somente você, exclusivamente você poderá responder. Não o seu ego criado pela sociedade, mas o seu espírito, pois “quem conhece a fundo a vida íntima do homem é o espírito do homem que está dentro dele” (1 Cor 2,11). Ah, acrescentei, além disso, ao deixar de beber por alguns dias, você, na verdade, pode estar, consciente ou inconscientemente, tentando fazer algo em seu próprio benefício, tal como perder uns quilinhos ou controlar o colesterol. E aí, meu amigo, “vai incorrer em pecado”!

--- Qual a solução --- desafiou-me.

--- Melhor do que jejuar, para mim é procurar nos transformarmos pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a vontade de Deus, conforme recomendou São Paulo (Rm 2,12). Aliás, aqui também Jesus foi claro ao dizer que, se não nos convertermos, se não nos tornarmos como crianças, nunca entraremos no Reino do Céu (Mt 18,3).

Infelizmente, quarenta dias sem álcool não irão tornar uma pessoa pura e inocente como uma criança, porém já é um bom começo. Sabe por quê? Abstendo-se do álcool, você estará “desperto” e, desse modo, estará mais próximo de Cristo. Pelo menos, esse é o entendimento que podemos fazer das palavras de São Paulo: “Desperte, você que está dormindo. Levante-se dentre os mortos, e Cristo o iluminará” (Ef 5,14).

Como se vê, é tudo uma questão de ego, entretanto, é bom saber que, segundo o Aurélio, jejuar também significa “continuar na ignorância de algo”...