Este texto é uma resposta a um amigo que, ao remeter-me um e-mail sobre aceitação, exclama: “Aceitar não é o mesmo que desistir!”. Reconhecendo as limitações de meus argumentos, à vista dos princípios científicos atualmente aceitos, tentarei demonstrar que, sob hipótese alguma, “aceitar não é o mesmo que desistir”.
O pressuposto básico é que o ser humano adulto, além do corpo, é composto de essência (espírito) e personalidade (ego). O adjetivo “adulto” tem por finalidade destacar que, no início da vida, nós somos apenas corpo e essência (espírito). A personalidade (ego) começa a se formar nos primeiros meses de vida e vai sendo incrementada e aperfeiçoada de acordo com as nossas necessidades de sobrevivência. Basicamente, dentro do tradicional binômio dor e prazer, ou seja, a personalidade (ego) vai sendo formada com o objetivo de nos afastar da dor e nos aproximar do prazer.
A partir dos primeiros meses de vida, a personalidade (ego) vai crescendo, e a essência (espírito) vai-se reduzindo. É uma luta desigual, pois, enquanto a essência (espírito) é amor – uma centelha divina –, a personalidade (ego) é basicamente competição – uma ficção criada por nós, tendo como referência as personalidades (egos) de nossos pais, professores, padres, pastores, amigos e pela sociedade de um modo geral.
Sempre gosto de salientar que, em termos de educação, a hipocrisia – inclusive a minha – vai passando de geração a geração. Nas escolas, educam-se as personalidades (egos) basicamente para competir; nas igrejas, tenta-se educar as essências (espíritos) para amar. O problema é que as personalidades (egos) já assumiram o comando, conforme se comprova através da dura realidade de nosso mundo, e as igrejas de hoje são compostas muito menos de essência (espírito) e muito mais de personalidades (egos).
Podemos afirmar, com segurança, que vivemos num mundo de personalidades (egos). As essências (espíritos) estão devidamente soterradas, e já se encontravam soterradas há dois mil anos, pois Jesus – referindo-se à essência (espírito) afirmou: “(...) deixem que os mortos sepultem seus próprios mortos” (Mt 8,22).
Um dos slides da mensagem diz: “No instante em que aceitamos, desmaterializamos situações que foram criadas por nós, soluções surgem naturalmente através da intuição ou fatos trazem as respostas e as saídas para o problema”.
A autora – Ana Cristina Pereira – não poderia ser mais clara, mas vamos dizer a mesma coisa com outras palavras: ao “desmaterializarmos situações que foram criadas por nós...”, desmaterializamos a personalidade (ego); e, ao desmaterializarmos a personalidade (ego), criamos um espaço para nossa essência (espírito) renascer. Com o renascimento da essência (espírito), surgem as soluções dos verdadeiros problemas e, conseqüentemente, o amor, a paz e a felicidade.
Infelizmente, aceitar – especialmente em nosso íntimo – não é tarefa fácil, pois significa que estaremos “matando” parte de nossa personalidade (ego) – uma personalidade (ego) que, na prática do dia a dia, nos esforçamos por cultivar das mais variadas maneiras possíveis: casas, carros, butiques, produtos de beleza, cirurgias plásticas, viagens, etc. E, acreditem ou não, até mesmo através de pseudocaridades e orando nas igrejas!
Aceitar verdadeiramente, de coração, é tão difícil que não me surpreenderia se, num futuro próximo, a aceitação constante do Pai Nosso – “seja feita a SUA vontade” – seja eliminada por falta de aplicação prática. E sem aceitação, ou seja, sem o “seja feita a vontade de nossa essência (espírito)”, não haverá solução, e continuaremos a viver eternamente no inferno de nossas mesquinhas personalidades (egos), em que pesem todas as tecnologias e bens materiais.
O tema é vasto e complexo. Mesmo sendo leigo, poderia adentrar pelo id, ego e superego de Sigmund Freud. Vou-me ousar, entretanto, somente a interpretar ensinamentos de nosso Irmão.
Quando Ele disse que “quem quiser salvar sua vida, vai perdê-la” (Mt 16,25), Ele estava se referindo à personalidade (ego). E, quando Ele disse “se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda” (Mt 5,39), Ele estava querendo nos dizer que, se reagirmos, estaremos reforçando a personalidade (ego) e, conseqüentemente, enfraquecendo a essência (espírito). O veredicto é claro: “(...) mas quem perde sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”, ou seja, quem perde a personalidade (ego) por causa da essência (espírito) vai encontrar a vida.
Se alguém leu as últimas linhas acima, deve estar exclamando: “Mas aceitar e não reagir é extremamente difícil no mundo de hoje – é praticamente impossível e até mesmo suicídio”! É extremante difícil, porque vivemos no mundo fictício das personalidades (egos), e não no mundo real das essências (espíritos).
Nesse sentido, em tom de brincadeira, digo a amigos: se retornar à nossa casa, isto é, ao Reino de Deus fosse fácil, Jesus – que não é burro – teria simplesmente nos ensinado a rezar e a fazer caridades, e não padecido como padeceu. Ele rezou e fez caridades, mas também foi taxativo: “(...) se vocês não se converterem e não se tornarem COMO crianças, vocês NUNCA entrarão no Reino do Céu” (Mt 18,3).
A necessidade de se transformar para entrar no Reino de Deus é óbvia, porque: primeiro, o Reino de Deus está dentro de cada um; segundo, se o Reino de Deus é o reino das essências (espíritos), ele não pode ser “poluído” por personalidades (egos) como as descritas em Romanos 1,29:
(Os homens) estão cheios de injustiça, perversidade, avidez e malícia; cheios de inveja, homicídio, rixas, fraudes e malvadezas; são difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, soberbos, fanfarrões, engenhosos no mal, rebeldes para com os pais, insensatos, desleais, gente sem coração e sem misericórdia.
A não ser que acreditemos em céu e inferno ou que, nos últimos dois mil anos, os seres humanos estejam se tornando essências (espíritos) puras e inocentes como as crianças. Ou seja, acreditar em Papai Noel!