Apesar de há longo tempo andar preocupado com
o mundo caótico que estamos deixando para nossos filhos e netos – e também para
nós mesmos, pois acredito em reencarnação – este texto foi motivado por uma
correspondência recebida de uma amiga. Ela fala sobre os ensinamentos da
Bíblia. Em que pesem, entretanto, nossos objetivos serem os mesmos, minha visão
de mudança é diferente. Basicamente, penso que temos de mudar o conceito, ou
seja, o entendimento que a maioria dos seres humanos tem de Deus. Estou
consciente de que se trata de assunto altamente polêmico, mas, também estou
certo de que não há outra saída para os problemas do mundo. E sobre mudanças, concordo,
tanto com Krishnamurti – a mudança da sociedade somente é possível com a
mudança de cada um –, quanto com Aldous Huxley – para a transformação da
personalidade radical e permanente, somente um método efetivo foi descoberto: o
místico. É ocioso dizer que este texto se destina a pessoas que têm mente
aberta, porquanto desafia paradigmas secularmente internalizados.
À medida que as pessoas vão se evoluindo
intelectualmente, vai ficando cada vez mais difícil aceitar uma espiritualidade
cega e mitológica. Assim, como salienta Pietro Ubaldi, torna-se imperioso
estabelecer uma relação com Deus de forma lógica e racional. Há alguns anos,
verifiquei que meus conhecimentos sobre espiritualidade se limitavam ao
catecismo. Refletindo a respeito, constatei também que a maioria das pessoas se
encontra em situação idêntica. A razão para que tão reduzido e equivocado
conhecimento permaneça ao longo dos anos é basicamente a mesma: a partir da
adolescência, somos atropelados pela correria competitiva do mundo capitalista,
e nossa religiosidade se reduz a uma freqüência semanal a cultos religiosos. É
uma atividade rotineira que se destina apenas ao cumprimento de um script de vida, à busca de socorro ou ao
agradecimento por graças recebidas. Simplesmente seguimos regras que nos foram
traçadas na infância, sem questionamento ou aprofundamento de nossos
conhecimentos sobre o que realmente são as verdades espirituais.
Quantas pessoas adultas estudaram
verdadeiramente os ensinamentos de Cristo? Eu disse os ensinamentos de Cristo,
e não a Bíblia. Estudaram criteriosamente, com lógica e razão, e, na medida do
possível, isentos de juízos e preconceitos internalizados na infância.
Praticamente ninguém, pois nosso tempo na vida adulta se volta essencialmente
para as atividades materiais, e, parafraseando São Paulo (Rm 1,28): desprezamos
o conhecimento de Deus e, por isso, Deus nos abandona ao sabor de uma mente
incapaz de julgar. Assim sendo, fazemos o que não deveríamos fazer, e o caos se
instala no mundo como vem ocorrendo atualmente.
Em
nossa vida, se tudo vai bem conosco e com aqueles que nos são caros, colocamos
Deus em stand by e deixamos o oba-oba
da vida nos levar como canta Zeca Pagodinho. Muitos vivem assim até a morte, e
nenhuma mudança acontece. E, se nada mudamos em nossa essência, vamos
reencarnando eternamente para repetir anos e anos nesta escola da vida.
Existem, entretanto, alguns que descobrem que “a vida que estão levando não os
está levando a lugar algum” e outros que, conforme lembra Susan Thesenga,
descobrem que não é possível conquistar a felicidade através da posse de bens
materiais, de realizações ou mesmo de relacionamentos, e finalmente voltam a
atenção para dentro de si e começam a perguntar: “Quem sou eu?”, “O que estou
fazendo na Terra?”, “O que ou quem é
Deus?” e “O que é a verdadeira felicidade e como posso obtê-la?”.
Nessa encruzilhada, surgem várias saídas,
como, por exemplo, o trabalho exacerbado, ou seja, o dos workolics norte-americanos; o álcool e as drogas, especialmente
para anestesiar o consciente nos momentos de ócio; os programas e as
reportagens de baixo nível da televisão que satisfazem os instintos subhumanos;
e, mais recentemente, a circulação de e-mails na Internet que, a cada dia,
torna a vida mais virtual e isolada. Alguns se deprimem, e outros buscam ajuda
psicológica. Jung constatou que aproximadamente 70% dos problemas mentais das
pessoas após os 35 anos estão relacionados com a espiritualidade. Isso talvez
explique porque várias pessoas também se voltam para as religiões, na esperança
de que alguma força externa possa resolver seus problemas, principalmente
problemas do mundo material.
Se Jung está correto, por que somente uma
parcela se volta para as religiões? Estou convencido de que o caminho da
espiritualidade não é mais trilhado, mesmo antes de uma possível crise se
instalar na pessoa, porque o conceito de Deus e de espiritualidade que as
pessoas têm, ou seja, aquele adquirido no catecismo em Miradouro na década de
50, não corresponde à lógica e à razão de uma mente adulta de 62 anos, como é o
meu caso. Somente existem duas alternativas: uma é manter o status quo dominante, permanecer no
oba-oba da vida e ir vivendo com o auxílio dos mecanismos de fuga mencionados;
a outra é questionar os conhecimentos sobre espiritualidade adquiridos na
infância a fim de adequá-los à realidade mental do mundo moderno.
Em essência, é o conceito de Deus como um ser
distinto, alguém externo a nós, uma entidade independente, nos termos de
“estamos na Terra” e “Deus está no Céu”, que precisa ser mudado. Se eu
considerar Deus como alguém separado de mim, esse deus não é absoluto, é
relativo, está incompleto, pois não engloba a mim, nem você e, certamente, nem
qualquer ser do universo. Toda a confusão do mundo existe porque temos essa
idéia de separação: “eu sou eu”, “você é você” e salve-se quem puder, cada um
puxando o “deus para a sua sardinha”. Com base nesse conceito errôneo de Deus,
tanto vamos continuar guerreando no Iraque quanto arrastando meninos pelas ruas
do Rio de Janeiro, pois “eu sou eu”, “eles são eles”, e “Deus é Deus”!
Assim pensando, comecei a questionar. Se
Deus, todo poderoso, está lá no Céu e eu, simples mortal, me encontro aqui na
Terra, como ficariam os ensinamentos bíblicos seguintes: “Uma vez que o Espírito de Deus habita em vocês...” (Rm 8,9), “[...]
por meio do seu Espírito que habita em vocês” (Rm 8,11), “Vocês não sabem que
são templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?” (1Cor 3,16),
“[...] porque o Reino de Deus está no meio de vocês” (Lc 17,21) e “[...] o
reino está dentro de vocês e está fora de vocês” (Tomé 3).
Se “o Espírito de Deus habita em mim”, “se
sou o templo de Deus”, de imediato, quando rezo, eu não preciso olhar para cima
nem buscar Deus tão distante, lá no Céu, porque Deus está em mim, e, desse
modo, eu tenho que voltar minha atenção totalmente para o meu Deus Interior.
Tudo isso me parece muito claro quando Cristo diz: “[...] quando você rezar
entre no seu quarto – ou seja, no seu
interior –, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai que
vê o escondido – Ele vê o escondido
porque Ele habita em nós e porque somos o templo de Deus –, recompensará
você” (Mt 6,5). O problema é que meu enorme EGO colocou meu Deus Interior em stand by. Aqui temos em funcionamento
uma das propriedades da Física: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao
mesmo tempo. Para dar espaço ao meu Deus Interior – renascer como disse Cristo
–, é fundamental que eu reduza proporcionalmente o tamanho de meu EGO.
Questionei também por que os maiores
mandamentos são: primeiro, amar a Deus e, segundo, amar ao próximo como a si
mesmo. Encontrei os esclarecimentos necessários nas palavras de Cristo e na
Física Quântica, em que pesem alguns estudiosos criticarem possíveis relações
dessa ciência com o misticismo.
Cristo disse: “O Pai e eu somos um” (Jo
10,30), “[...] eu estou em meu
Pai , vocês em mim, e eu em vocês” (Jo 14,20). Esse
entendimento de que somos um todo, ou seja, de que “estamos no mesmo barco” é
ratificado pela Física Quântica conforme se depreende de Capra (1982)[i]:
a)
o
universo é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma
das propriedades de qualquer parte dessa teia é fundamental; todas elas
decorrem das propriedades das outras partes do todo, e a coerência total de
suas inter-relações determina a estrutura da teia;
b)
quando
penetramos na matéria, a natureza não nos mostra quaisquer elementos básicos
isolados, mas apresenta-se como uma teia complicada de relações entre as várias
partes de um todo unificado. [...] As partículas subatômicas – e, portanto, em
última instância, todas as partes do universo – não podem ser entendidas como
entidades isoladas, mas devem ser definidas através de suas inter-relações.
Vale
a pena fugir um pouco do tema para comentar resumidamente o texto de Capra:
a)
nenhuma das propriedades de qualquer
parte dessa teia é fundamental
– ou seja, somos todos iguais, por que a maldita vaidade?
b)
todas elas decorrem das propriedades
das outras partes do todo
– ou seja, todos dependem de todos, por que tanto egoísmo?
c)
a coerência total de suas
inter-relações determina a estrutura da teia – ou seja, a coerência de nossas inter-relações é que
vai determinar a estrutura do Todo, a estrutura de Deus. Se Deus é bom ou mau
depende unicamente de nós.
Para mim, Deus não está lá no Céu, e eu estou
aqui na Terra. Eu, Anacleto, e o Pai somos um, esteja o Anacleto onde estiver!
Há muitos anos alguém disse isso e foi assado na fogueira. Mas aqui está a
grande sacada da mudança, pois somente entendendo que “eu e o Pai somos um”, e,
conseqüentemente, “eu e você também somos um” é que vou entender plenamente o recomendado
por Cristo em Tomé 25: Ame seu irmão como
sua alma, proteja essa pessoa como a pupila de seu olho.
Existem duas grandes dificuldades quanto a
esse conceito de Deus. A primeira porque, se o Pai e eu somos um, eu, você e
todos os demais somos co-criadores, co-gestores do Universo juntamente com o
Pai. Isso é uma tremenda responsabilidade, pois não posso culpar mais ninguém!
Sou o único responsável, tanto pelos meus problemas, quanto pelas respectivas
soluções. E, se me conscientizo dessa unidade, ficarei numa grande enrascada,
pois não vou ter mais aquele deus separado de mim, antropomórfico, “gerentão”
do universo, a quem recorrer nos momentos de dificuldades. Minhas dificuldades
passam ainda a ser maiores, porquanto, se aceito que “Deus habita em mim”, “que
sou o templo de Deus”, como disse São Paulo, fica impossível agir às escondidas
contrariamente aos ensinamentos de Cristo, seja por meio de pensamentos,
palavras ou ações.
Com relação à segunda dificuldade, reporto-me
aos intermediadores, a Mateus 23 e, mais especificamente, à Introdução da Carta
aos
Hebreus[ii]:
Exceto Jesus, nada
mais é absoluto: nenhuma instituição ou estrutura, tanto civil como religiosa,
tem caráter absoluto e intocável. Sendo único mediador, Jesus abre
completamente a comunicação entre Deus e os homens, e dos homens entre si – o
povo está livre para participar inteiramente da realidade de Jesus e, portanto,
ter acesso à intimidade com o próprio Deus. (grifo nosso)
[i] CAPRA,
Fritjof. O ponto de mutação. São
Paulo: Cultrix, 1982.
[ii]
Essa Introdução da Carta aos Hebreus a que me
refiro não se encontra em todas as Bíblias. A citação foi extraída da Bíblia
Sagrada, Edição Pastoral, 36ª impressão. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica
Internacional e Paulus, 1990, p. 1545