05/11/2010

DINHEIRO E PODER

Parei no posto para calibrar os pneus do meu fusquinha. Os dois funcionários que se encontravam conversando ao lado de uma bomba não se mexeram.
Abaixei para calibrar o pneu traseiro e pensei: “será que eles permaneceriam ali parados se eu estivesse na Hilux SRV cabine dupla?” Terminei de calibrar os pneus, coloquei 30 “meréis” no tanque. O pára-brisa do fusca está todo sujo, mas o frentista não se ofereceu para lavá-lo. Ah, se fosse a Hilux!

Cheguei à Olavo Tostes; estacionei e me dirigi ao escritório. No trajeto, vejo um adesivo num carro. Paro e leio algo semelhante a: “Ser dizimista é deixar de assistir e fazer parte da Igreja”. Penso: “novamente o dinheiro”. Continuo pensando: “Dízimo, a décima parte. Isso quer dizer que quem tem mais deve dar mais.
Quem dá mais, deve receber mais, é uma questão de lógica e justiça. A possibilidade de se ter algum privilégio no Reino de Deus, em prestações de 10% da renda, é uma alternativa tentadora. Será que as indulgências da Idade Média ainda continuam plantadas em nossa mente inconsciente?

Tentadora e perigosíssima, pois isso pode levar a pessoa a querer sempre mais, para dizimar mais e, assim, melhorar suas chances no outro mundo. Desse raciocínio, podem decorrer duas conseqüências graves: uma, que não é novidade, a pessoa pode se esquecer da ética e da justiça e entender que “dinheiro compra tudo”. Será que o filme “Proposta indecente” retrata uma utopia?

A outra conseqüência é – se posso comprar tudo – por que devo me sacrificar para mudar, isto é, me tornar um ser humano melhor? Até alguns atrás, eu pensava que o caminho da salvação era a caridade. Bastava simplesmente não fazer o mal, ir à igreja aos domingos, fazer alguma caridade e tudo estava bem. Hoje, penso diferente.

Podemos e devemos fazer caridade, porque todos estamos no mesmo barco – “o Pai e eu somos um” (Jo 10,30) –, mas como afirmou Jesus se não nos transformarmos, NUNCA entraremos no Reino do Céu (Mt 18,3). Consciente da importância de nos tornarmos pessoas melhores, São Paulo recomendou (Rm 12,2): “Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se pela renovação da mente...”. Os amigos riem quando digo que, se não nos transformarmos, ou seja, nos tornarmos perfeitos como é perfeito o Pai que está no céu (Mt 5,48), que tipo de céu vamos construir? E acrescento: somente o perdão do Pai não transforma ninguém; não é por eu perdoar uma dívida que o devedor passa a ser um bom pagador!

Finalmente chego à minha sala. Vejo sobre a mesa o exemplar do Diário de Muriaé, de 30 de abril passado, e leio: “O prefeito Zé Braz (PP) está se comportando como um autêntico Reich. Quando decide, faz e pronto”. O jornal se referia à transferência da Feira da Barra. Lá vai eu pensar de novo. Rememoro as aulas de Português Instrumental e me pergunto: “Qual a intenção comunicativa do texto”, “a focalização está correta” e “quais as inferências”?

Se existe um “reich” é porque poderes lhe estão sendo concedidos, haja vista que, segundo a lei citada, a cidade deve ser administrada de forma democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade. Mas qual a explicação para a falta de interesse do povo pelos negócios públicos? Por que o povo paga as contas, mas não confere as faturas? Por que ele se omite e aceita que as cidades – o mundo real em que vive e que condiciona fortemente o seu estilo de vida – sejam administradas à moda antiga, isto é, de forma dividida, autoritária, centralizada e tecnocrática, num total desrespeito à Lei Federal nº 10.257, de 10.07.01, denominada Estatuto da Cidade?

Há inúmeras respostas para as perguntas acima – econômicas, políticas, sociais, psicológicas e até espirituais. Todas intimamente entrelaçadas. Em 1937, por exemplo, Aldoux Huxley escreveu:
Em maior ou menor grau, todas as comunidades civilizadas do mundo moderno são constituídas de uma pequena classe de governantes, corrompidos pelo excesso de poder, e de uma grande classe de governados, também corrompidos, pelo excesso de obediência passiva e irresponsável.
Creio que o Mestre Huxley se equivocou. Não se trata de “excesso de obediência passiva e irresponsável”. Talvez se trate de sobrevivência, conforme se depreende das palavras do Padre Paulo Roberto (Matriz São Paulo), referindo-se à morte de Jesus:
A morte de Jesus é conseqüência de suas atitudes, decisões e postura frente a uma sociedade que usava a religião e o nome de Deus para encobrir toda forma de discriminação, exclusão, injustiça e dominação. As autoridades que deviam serviam ao povo serviam-se do povo. [...] Denunciava, através de gestos e parábolas, as atitudes e estruturas injustas mantidas pelas autoridades do povo. Dessa forma, conclamava o povo a trabalhar pela transformação da sociedade.
Se há dois mil anos, Jesus foi crucificado porque conclamava o povo a trabalhar pela transformação da sociedade, quem é suficientemente doido para, no mundo de hoje, lutar para a transformação de nossa sociedade?

Melhor é admirar o fenômeno Ronaldo que volta à seleção e se calar diante do fenômeno Lulinha que, com um salário mensal de R$ 1.500, conseguiu comprar duas fazendas: uma de 45 milhões em São Paulo e outra de 100 milhões no Pará, esta em sociedade com Daniel Dantas e Duda Mendonça.

Depois disso tudo, ficou difícil estudar para uma prova sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois o artigo primeiro diz: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (grifo nosso).
           
Será?

(05/2009)